Auto de Natal - Conto



No quarto dia após o bate papo firmou-se, em meio a uma ventania gelada, o brilho de um sol tranqüilo e límpido. Resolveu: teria de ser naquele dia. Iriam perceber se adiasse mais a execução da tarefa. Foi caminhando, meio de lado, levando o balde d’água sem nenhum detergente e uma flanela puída pendurada pelo elástico do calção.
De lá de baixo da ladeira, viam-se os três carros imundos estacionados certinhos pelo Manué. Ninguém poderia desconfiar. Eram os três carros desovados ali e estavam esperando para serem depenados. 
Quando chegou à altura do primeiro fusquinha, que era de um vermelho queimado e possuia os pára-choques da frente dependurados, depositou o balde na calçada, mergulhou a flanela na água e começou a passá-la no vidro de trás. Ao jogar pela segunda vez o pano encharcado contra o fusca, lá dentro, no banco de trás, percebeu um pequeno volume. Mergulhou de novo o pano, esfregou com mais força o vidro embaçado de poeira e óleo antiqüíssimo, e viu, com mais clareza, o que parecia ser uma criança deitadinha, ou um cachorro, que levemente se remechia. De repente, o voluminho chutou o ar e abriu um berreiro; meu Deus, é um pirralho! gritou o Zé. O berreiro era tão claro e estridente que, mesmo dentro do carro fechado, se espalhou sem dificuldade pela rua toda vazia de tráfego àquela hora da manhã.
Assustado com aquele pesadelo, Zé correu em busca do Manué, que, com o maçarico, ia fundindo os números dum motor encomendado, e o levou até o besouro vermelho que gritava uma buzina de choro. Os dois, de chinelos, ladeando o automóvel, ofegantes, observaram o pequeno contorcionista  com um calado estupor. Ainda estava meio enrolado num pano esbranquiçado que ia se desengonçando no debater-se deixando que vissem sua rolinha. Se tratava de um meninão, mais pro anoitecido, de cabelos pixaim bem coladinhos e que mostravam, pelos seus vãos, o brilho do suor gerado, com certeza, pela quentura abafada de dentro daquela bolha de lata. E essa lamentável condição da criança, gorducha e intranqüila que parecia mesmo ter caído do teto de uma igreja, melindrou os malandros. Tanto o observaram, e com tanta atenção, que o Zé e o Manué foram, lentamente, se refazendo do assombro e acabaram  por achá-lo digno de ser salvo. Zé deu um passinho pra trás e meteu o pé no vidro do passageiro, que ruiu sem resistência. Destrancou e abriu a porta, subiu o banco estropiado e foi levantando o moleque como costumava levantar seu sobrinho, pelos braçinhos. O menino não chorava mais. Foi aí que concluíram, com muito bom juízo, que era um moleque abandonado por alguma puta, talvez alguma conhecida deles, até.
Levaram o moleque pra oficina.
Ao chegarem lá, o Manué disse num sussurro doído:
- Corre chamá o Lourival e a mulher dele. Corre, meu!!! Porra!!!
Cinco minutos se passaram, chegaram o Lourival e a Marina, mulher dele, trazidos pelo Zé. Loguinho, ela surrupiou o menino dos braços do Manué. Marina olhava dentro dos olhos do menino, por sua vez, com seus grandes olhos castanhos mareados. Sorria, com um ar quase idiota. Estava encantada. 
- Cadê a mãe dessa criança?
Os homens se entre olharam não sabendo o que dizer ou fazer...
-Lourival, vamo pra casa, preciso dá uma mamadeirinha pra esse neném antes que ele morra de fome. E gritou num agudo histérico: Vocês são loucos ou o quê?
Franzindo forte a testa, a mulher do pescoço mais comprido e da magreza mais magra da vila, descia o caminho de casa. 
Mentalmente já traçava, delineava, cogitava sobre o destino da criança e o dela: primeiro, ela adotaria a criança, sim, a partir daquele momento o neném moreninho seria dela, no papel! – o pessoal que se lascasse - pensava. E ela colocaria o nome de Jesus nele, Jesus da Silva, como o avô. Adivinhava que, por enquanto, ele dormiria no andar de baixo do beliche, até o dia em que Ana Maria da Silva, sua filha, fosse intimada a se recolher ao nível inferior vitimada pela força descomunal do menino que subiria, enfim, à parte superior.
Passaram-se dois domingos. No terceiro domingo Lourival se trajou perfeitamente nos seus panos brancos, estupidamente brancos, poderia se dizer, pois Marina colocara, diariamente, por toda a semana, a sua roupa quarando na grama – estava perfeita. Marina colocou seu vestido verde que sentia estar lhe apertando um pouco, mas que ainda achava seu melhor vestido. 
“Era só um osso modelado” pensava Lourival a observá-la pelos reflexos da geladeira ou da televisão. Ele sentia que se olhasse diretamente a mulher nestes dias de festa ela perceberia seus pensamentos. A olhava, então, pelos reflexos que deveriam funcionar, para ele, como seres inibidores naturais da telepatia. 
Ao mesmo tempo que descascava uma lima, Lourival pensava: o Padrinho seria o Zé, nada mais justo por ter achado Jesus, a alegria de Marina; e o Zé escolheu a filha de seu padrasto pra ser Madrinha, uma jóia de menina com suas tetinhas de boneca de louça; o churrasco, de primeira e lingüiça, ia ser na edícula da oficina, lugar que parecia ter sido traçado pelo Arquiteto para essa finalidade; cerveja não ia faltar. Porra, lotaram dois tanques de latas de cerveja e garrafas, tinha gelo em cima e em baixo: um freezer de malandro; o Mané ia com aquele mocassim outra vez, puta que pariu, aquele ali... - etc.
Marina saiu do banheiro, foi ao quarto, pegou Jesus que reluzia vestido num cetim azul. Estava tranqüilo..., ela sentia, levemente, que o moleque já a reconhecia como mãe. Ela deu um muxoxo molhado nele e foi, toda faceira e calma, rumo à porta. Lourival pulou e, mais que solicito, abriu solenemente a porta da rua para que eles saíssem: "era uma família linda aquela", retomando e concluindo sua divagação interrompida.
Ao chegarem à capelinha, olharam-se, ternamente, mais uma vez, contemplaram o neném; Lourival suspirou e, calmamente, inclinou-se para amarrar os sapatos. Ambos pensaram em seus pés direitos ao cruzarem a soleira. Entraram. Entraram pela porta entreaberta que conduzia à navezinha da casa de Deus.
Todo o interior da igrejinha estava habitado por focos de luzes coloridas que se cruzavam. Lá no altar, junto a bacia batismal, eles reconheceram alguns amigos seus juntos ao Padre que conversavam entre si, sorridentes.
Manué os viu primeiro e foi ao encontro dos três. Ao chegar perto, foi logo dizendo com uma voz baixa e alegre: "o Padre sabe quem é a mãe do moleque!".
Lourival e Marina pararam. Pareciam terem visto um fantasma, um demônio. Estavam petrificados.
Lourival, com um soluço entrecortado sussurrou  um “o quê?” inaudível pro Manué. Marina branqueou que era uma cera.
O Padre, por sua vez, gordinho e simpático, percebendo a situação, atravessou a igrejinha numa corrida frenética e, agilmente, encaixou-se entre Lourival e Marina. Em seguida, enlaçando seus braços nos braços do casal, iniciou uma marcha muito lenta, intercalada de pausas muito alongadas, e para os convidados aquela cena pareceu que os três, mais a criança, eram noivos de uma típica família moderna rumo ao altar.
Manué deu de ombros e saiu pra fumar um cigarro. Lourival, ao ver o Padre de perto assim, teve uma impressão forte que ele tinha a cara de um bicheiro amigo seu que morava no bairro vizinho...
-Meus filhos, começou o Padre numa voz que era ao mesmo tempo terna, firme e resoluta, não se preocupem. Seu filho, aliás, o filho que vocês vão adotar é meu... sim, é meu, fiquem tranquilos! A mãe dele, é uma prima minha que morava aqui na sacristia... depois de uma noite de vigília, bebemos um vinho e outro e aconteceu o quê ninguém esperava... nove meses se passaram com ela morando numa pensãozinha aqui perto onde eu dava assistência como podia dentro de um segredo que ela me suplicava. Ela dizia, coitada, que me entendia e que sabia que eu era Padre, que não queria que eu abandonasse meus votos, que tudo não tinha passado de um acidente: ela é uma santa. Bom, para lhe fazer a vontade, aceitei. Porém, depois de ter dado à luz a criança, ela simplesmente sumiu e, pior, sumiu com o bebê, meu filho, pra meu total desespero. Depois de um tempo, por intermédio de um primo comum, fiquei sabendo que ela voltara pra nossa cidadezinha e que não tocara no assunto com ninguém por lá, cumprindo a promessa de guardar nosso segredo... Mas eu não tinha idéia do quê acontecera com o menino, pois este meu primo, como os demais, nem cogitavam nesta idéia. Santo Deus, que desespero! E aí, hoje de manhã, fiquei sabendo do achado que vocês fizeram, da data e do lugar onde encontraram o menino e agora, ao vê-lo, tenho certeza absoluta que se trata do meu filho. 
Marina olhava o rostão gordo do moreninho e olhava o do Padre: o nariz era o mesmo, mesmo... a cor era diferente, era da mãe, com certeza. Marina suspirou... Lourival mediu o moleque mais uma vez, de cima embaixo, e viu que ele também se parecia muito com o bicheiro da padaria, mas calou.
O Padre segurou firmemente a mão de Lourival e disse: o filho é seu!! Com todo o meu amor eu vos abençôo! Lourival abaixou a cabeça e, desabrochando num sorriso meio tímido... de alívio... sentenciou: assim seja, amém!
Após de alguns momentos em silêncio, Marina foi se recompondo e olhou para trás. Reparou que a luz límpida do sol ia começando a entrar pela meia banda aberta da Capela; não tinha uma brisa que fosse; ela  virou-se para o Altar e perguntou numa voz embargada de alegria: 
- Onde tá o puto do Zé que já devia já ter chegado? Lourival, então, virou-se pro Manué que voltara, naquele momento, pra junto do grupo e resmungou: 
- E a vadia da moleca da madrinha, cadê?